O governo Lula (PT) acelerou a liberação de emendas parlamentares e superou R$ 22 bilhões pagos antes da trava imposta pela lei por causa das eleições municipais.
A cifra desembolsada ultrapassa os cerca de R$ 17 bilhões (em valores já corrigidos) distribuídos antes das eleições de 2022 por indicações de deputados e senadores, período em que Jair Bolsonaro (PL) governava o país. O recurso será direcionado principalmente aos cofres das prefeituras.
O volume de recursos desembolsados se deu devido a pressão de Câmara e Senado, que forçou o governo a fechar acordo para não sofrer derrotas no Congresso.
Os dados de pagamentos são de quinta-feira (4), divulgados nesta sexta-feira (5) em portais da transparência. A soma de emendas pagas deve subir durante o dia.
A partir da próxima semana, a margem para repasse de emendas fica limitada a poucos casos, como o custeio de obras em andamento. Isso porque a legislação eleitoral impõe uma série de vedações nos três meses que antecedem o pleito para evitar abusos de poder político e econômico.
A trava se aplica às transferências da União e a inaugurações de obras, entre outras ações.
As emendas são uma forma pela qual deputados e senadores conseguem enviar dinheiro para obras e projetos em suas bases eleitorais e, com isso, ampliar seu capital político. A prioridade do Congresso tem sido atender seus redutos eleitorais, e não as localidades de maior demanda no país.
A maior parte das emendas (ao menos R$ 18,5 bilhões) será injetada em governos municipais para turbinar fundos de saúde e custear convênios para obras. Os repasses vão beneficiar mais de 5.300 municípios com pagamentos de R$ 21,5 mil a R$ 153 milhões. São Gonçalo (RJ) recebeu a maior cifra.
A verba enviada ao município governado por Capitão Nelson (PL) supera os investimentos previstos para todas as áreas (R$ 144,6 milhões) na lei orçamentária local. A maior parte dos recursos foi indicada pela Comissão de Saúde da Câmara, o que dificulta a identificação dos padrinhos políticos específicos da verba.
O dinheiro para a saúde domina os pagamentos de emendas, pois metade das indicações individuais de deputados e senadores deve ser aplicada no setor. O recurso pode bancar mutirões de exames e cirurgias, além de aliviar o caixa de prefeitos ao aumentar o financiamento federal das ações em hospitais e ambulatórios.
Coordenador acadêmico da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), o advogado Renato Ribeiro de Almeida disse que a injeção das emendas pode potencializar situações de abuso de poder e favorecer candidatos ligados aos comandos dos municípios.
“Já é sempre difícil lutar contra a situação, pois o cargo [de prefeito] já dá uma exposição. Se o sujeito está no cargo e faz uso de recursos para suplementar ainda mais as políticas públicas em curso, aumenta a dificuldade da oposição”, disse Almeida.
A distribuição de emendas ainda está no centro de suspeitas recentes de irregularidades. É o caso da investigação da Polícia Federal que aponta que o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, atuou no desvio de verbas para obras bancadas por indicações feitas por ele mesmo, no período em que exercia o mandato de deputado federal. Juscelino nega as suspeitas de corrupção.
Uma série de reportagens da Folha de S.Paulo ainda mostrou que a emenda amplia desigualdades em políticas públicas, criando inclusive um abismo no acesso à água. Na prática, municípios mais necessitados são ignorados, enquanto redutos políticos são abastecidos sem nenhum tipo de critério técnico.
A cifra total paga em emendas pelo governo corresponde a cerca de 40% dos R$ 52 bilhões disponíveis em 2024 para indicações individuais de deputados e senadores, além daquelas feitas por bancadas estaduais e comissões do Congresso Nacional.
A influência das transferências especiais, conhecidas como “emenda Pix”, disparou no pleito atual. São ao menos R$ 4,4 bilhões distribuídos nessa modalidade, principalmente às prefeituras, contra R$ 1,5 bilhão pagos no ano da última eleição.
O deputado ou senador indica apenas o local que vai receber a emenda Pix, sem a necessidade de encaixar o recurso dentro de programas da prefeitura ou convênios.
O município de Macapá (AP) recebeu mais de R$ 44 milhões em transferências especiais. Apenas o senador Lucas Barreto (PSD), aliado do prefeito Dr. Furlan (MDB), que busca a reeleição, encaminhou R$ 17,2 milhões para a cidade. A reportagem procurou o gabinete do senador e aguarda manifestação.
Além da vontade política do governo, o ritmo de pagamento das emendas pode variar conforme o tipo de verba que é solicitada pelo parlamentar. Uma transferência direta ao cofre do município é mais simples de executar, enquanto uma obra de pavimentação pode levar mais meses, por exigir assinatura de convênio ou uma licitação.
A falta de transparência das emendas voltou ao debate no STF. O ministro Flávio Dino determinou uma audiência de conciliação em 1º de agosto com diversas autoridades para avaliar se as práticas já declaradas inconstitucionais pela corte se mantêm.
“Fica evidenciado que não importa a embalagem ou o rótulo (RP 2, RP 8, ‘emendas pizza’ etc.). A mera mudança de nomenclatura não constitucionaliza uma prática classificada como inconstitucional pelo STF, qual seja, a do ‘orçamento secreto'”, afirmou Dino em decisão.
Há ainda categorias de emendas em que é mais difícil apontar qual município será beneficiado. É o caso da verba usada para compra de maquinários, como tratores, ou pavimentações. Nesses casos, os portais de transparência acabam apontando como local beneficiado as sedes das empresas contratadas.
O governo ainda correu para acelerar o desembolso dos “restos a pagar” de emendas de anos anteriores. De forma geral, são verbas de obras e outros serviços em andamento e que são pagas conforme o serviço avança.
O valor pago em 2024 das emendas pendentes soma R$ 6 bilhões. Durante a campanha de 2022, Lula chamou as emendas de relator de o “maior esquema de corrupção da atualidade”, “orçamento secreto” e “bolsolão”.
As negociações por verba, porém, seguem com baixa transparência e sob influência no Congresso dos mesmos atores que atuavam na gestão Bolsonaro. No caso da Câmara, o próprio da presidente, Arthur Lira (PP-AL), é um dos responsáveis pela partilha de verbas de comissão. Ele repassa o valor acordado com o líder de cada partido, que depois transfere aos deputados. Esse modelo foi apelidado de pizza na Câmara.
Como a Folha de S.Paulo revelou, a Comissão de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara dos Deputados favoreceu Alagoas na divisão das emendas parlamentares de 2024, estado que é a base política de Lira.
Se o governo seguir a indicação do colegiado, as prefeituras e o governo alagoano serão o destino de cerca de R$ 320 milhões, do total de R$ 1,1 bilhão em emendas disponíveis na comissão. O valor supera a soma da verba indicada pelo mesmo órgão a 19 outros estados.